O papel do jornalismo científico no combate à desinformação em tempos de pandemia
“O papel do jornalismo científico no combate à desinformação em tempos de pandemia”
Em tempos de pós-verdade, no qual opiniões prevalecem
aos fatos, toda comunidade científica começa a se indagar, provavelmente
demasiadamente tarde, onde errou. O erro, se assim podemos chamar, está na
pouca importância dada, ou até mesmo na total ausência da divulgação, em termos
menos técnicos, do conhecimento que vem sendo construído.
Seja no campo da genética, da física de partículas ou da bioquímica metabólica, não estamos nos referindo, aqui, às publicações em papers científicos. Contrariamente, por se tratarem de motores de produtividade e fundamento de métricas que indicam quais pesquisas valem investimentos e quais não, essas sim, os cientistas fazem e fazem muito. O ponto aqui é a divulgação científica para a população geral, uma população que não sabe, ou não se lembra exatamente dos termos e conceitos relacionados ao sistema imune, por exemplo. Pessoas que constroem e cristalizam uma concepção de que a Ciência está distante de suas realidades, e que, portanto, não sabem onde achar essas informações ou nem ousam entendê-las.
Iniciei o texto falando que a comunidade científica
começou a se indagar sobre essa responsabilidade intrínseca de informar os
outros e perceber as falhas desse sistema que não favorece o diálogo mais amplo
sobre Ciência com a sociedade. Embora ainda tímidos, movimentos de expansão da divulgação
científica a partir da comunidade acadêmica vêm sendo cada vez mais frequentes, ainda
mais em decorrência da pandemia do Covid-19. Pesquisadores têm usado as
tecnologias e as redes sociais para atingir comunidades extra-acadêmicas, divulgando seu meio de trabalho, investigações e processos científicos. Sendo
assim, 2020 foi marcado como o ano das lives e dos
instagrams de divulgação científica, da mesma forma que também deixou evidente como a desinformação aliena e é causa de muitas mortes que poderiam ter sido evitadas.
Escolhida como a palavra do ano em 2016 pelo dicionário Oxford, a pós-verdade, ou em inglês “post-truth” é definida como: “relacionar ou denotar circunstâncias nos quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal” (OXFORD, 2016). Tal definição, de uma ótica mais simples, pode ser explicada por algumas dessas frases:
- “Se todos meus amigos compartilham essa informação no Facebook, deve ser verdade”; ou
- “Meu líder religioso comentou isso na celebração, e eu acredito de olhos fechados nele”;
- “A fulana é tão boazinha,
jamais iria querer nos enganar, então concordo com ela”.
Nesse telefone sem fio da atualidade, as pessoas não
apenas perdem informações no meio do caminho, mas também acrescentam e nem
sequer verificam se aquilo que está sendo propagado faz sentido, está
contextualizado no espaço e no tempo, faz referência a alguma fonte segura ou
diz a verdade. E qual verdade? A sua ou a minha?
Curiosamente a verdade deixou de ser única, os
argumentos para justificar, por exemplo, que a Terra é plana são os mais
alucinantes possíveis, mas há quem realmente encontra uma razão neles. E assim
são criadas e divulgadas tantas Fake News sobre as vacinas, sobre a origem do
vírus SARS COV 2 e inúmeras teorias da conspiração que brotam a cada segundo
nos blogs, nas redes sociais e nas correntes do Whatsapp.
Mas se a comunidade científica, que até então não
tomava para sí a responsabilidade de fazer a divulgação científica, sobrava
para quem nos informar sobre ciências, além das escolas? A importância do
jornalismo científico é bastante clara para qualquer pessoa que entenda que uma
sociedade crítica e emancipada só existe com informação de qualidade e informação
sobre os fenômenos que nos rodeiam. Porque sim, a Ciência está em todo o lugar
e não apenas nos laboratórios cheios de vidrarias, elementos corrosivos e
cientistas malucos.
O ato de fazer jornalismo científico é, mais do que
nunca, um ato político e de resistência. Pois são tais profissionais que buscam
dar luz para toda uma sociedade que está nas trevas e ao trazerem informações
verificadas, coerentes e de maneira simples para o expectador, ouvinte ou
leitor, leigos e/ou interessados, trazem consigo também a oportunidade de uma tomada de
consciência, a oportunidade da reflexão e da tolerância.
É ótimo que a comunidade científica acordou para a
dura realidade de que se não divulgarem suas pesquisas para a população, não
haverá pessoas que entenderão como necessários os investimentos em pesquisa, de
forma que os cortes de orçamento para universidades públicas neste país só irão
ladeira abaixo. Mas o fato é que, sem o jornalismo científico, estaríamos
vivendo uma realidade mais dura e obscura.
A colaboração entre ambos os profissionais é que deve
ser incentivada para subirmos um degrau na luta contra a desinformação. Os
acadêmicos e os jornalistas científicos possuem competências diferenciadas e
complementares e podem, sim, ter objetivos em comum. Garantir uma divulgação
científica de qualidade é agregar o rigor de cientistas às habilidades de
comunicação de um jornalista científico.
Um autor que, inclusive, é grande alvo de críticas na atualidade, escreveu que é somente conhecendo verdadeiramente sua realidade e
construindo sua consciência crítica sobre o seu mundo que um sujeito consegue
emergir e transformar sua vida e a vida dos que o rodeia. São palavras, é claro,
de Paulo Freire, que disserta sobre uma massa de oprimidos que é dominada por
uma elite de opressores, na qual, os últimos, acomodados em suas posições
privilegiadas, não fazem esforços para mudar tal situação.
Paulo Freire, então, se faz atual ao apontar que: “a
única forma de pensar certo do ponto de vista da dominação é não deixar que as
massas pensem” (Freire, 2001, p.128). E assim, não é difícil entender o
posicionamento de muitos que estão nos altos cargos políticos brasileiros, que
além de todos as ações desumanas, também incentivam a desinformação, o medo e a
mentira.
Nunca nos sentimos tanto dentro de uma distopia, pois
acontecem coisas nesse Brasil que até George Orwell, se soubesse, se arrependeria de não tê-las escrito em 1984. Entretanto, enquanto escrevemos,
falamos, nos impomos e enquanto esse texto e tantos outros ainda não estão sendo alterados e
enviados direto para as fornalhas do esquecimento, há também resistência e
esperança.
Referências
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 30ªed: Paz e Terra -
São Paulo, 2001.
ORWELL, G. 1984. São Paulo: Editora Schwarcz LTDA, 2009. 414p.
Oxford Languages. Word of the year 2016. 2016. Disponível em : <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016> Acesso em: 31.05.2021.
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