Ignorância, inércia e 1984

*POSSUI SPOILERS DO LIVRO 1984 - GEORGE ORWELL*

Hoje eu terminei de ler 1984. Havia começado anos antes, não passei da metade, enrolei, e largado ele ficou por um bom tempo. Juntamente com pandemia, me vieram inúmeros sentimentos, um deles foi a impotência da improdutividade. A improdutividade aqui referida se relaciona a diversos aspectos: acadêmicos, mentais, emocionais e culturais. Pra mim, a improdutividade gera um vazio que vai aumentando a cada dia que eu não me sinta produtiva. Sabia que tinha tarefas a serem desenvolvidas no âmbito da minha pesquisa, do meu trabalho como professora e também para comigo mesma. É neste último quesito que entra a necessidade de ler. O querer saber, a busca pelo conhecimento, é algo muito atraente para mim, mas também é penoso. Penoso, não por não gostar de ler, mas por ter, ao longo dos últimos anos, perdido o hábito (Parênteses 1).
Os livros parecem estáticos demais perto de uma rede social. É, de certa forma, até injusta essa comparação. Imagino que devam existir pesquisas que mostram como são nossas reações neuronais quando usamos o celular e, em contrapartida, lemos um livro. Crio aqui uma hipótese minha de que provavelmente partes diferentes do nosso cérebro são ativadas quando acessamos o celular ou quando lemos. É possível que algo na primeira possa nos gerar uma maior dependência ou até mesmo liberar hormônios que nos faz ficar presos naquela ação. 
Talvez essa seja então uma possível causa desse meu sentimento de impotência em relação a leitura. O impulso de querer ler, eu tinha e nunca perdi. Livros aqui em casa para ler é o que não falta. Mas e o impulso para colocar a leitura em ação?
Vinha, desde o início deste ano, numa tentativa de voltar a me habituar com leituras. E tava conseguindo fazer certos avanços, apesar de ainda estar longe de atingir o nível que gostaria. Entretanto, se me perguntarem agora qual é esse ideal, eu não saberia responder. Possivelmente sempre será aquele além do que é, de fato, feito, de forma a não importar, realmente, quantas páginas tenham sido lidas. Talvez seja essa uma das importantes questões a serem analisadas - o nunca estar satisfeito com o que conseguimos fazer. Mas bom, deixemos ela em stand-by por enquanto.
Voltando as minhas leituras, estava lendo um livro chamado Violetas de Março, o qual decidi parar por volta da página 100, por ter me sentido agredida, tal era a forma repulsiva que o autor narrava as personagens femininas. Me ví, novamente, na iminência de cair de novo no ciclo vicioso de apenas começar os livros e não os terminar. Eis que então, me veio a cabeça reiniciar o 1984. É curioso, algumas coisas para mim parecem que tem o efeito de rituais. A lógica grampolínea foi: se voltar a ler o 1984 acabo com o peso de ter deixado de ler o Violetas de Março (Parênteses 2). 
O bom é que, com já mencionei no início, terminei o 1984.
Talvez nem tão bom assim, pois o livro é cruel. Às vezes interessante de ler, às vezes lento. Confesso que no fim peguei bastante firme na leitura, mas sei lá a razão. Talvez queria acabar logo aquele horror, talvez tinha esperança de um fim diferente (apesar de no fundo saber que não), talvez fui movida por um medo de que algo ainda pior chegaria e que me faria parar de ler, mas no final das contas, eu o li inteiro (Parênteses 3).
Como muitos e muitos leitores anteriores a mim, me imaginei no quarto 101. Na verdade tive medo do medo do Winston ser exatamente o mesmo que o meu, pois como conseguiria ler? Não foi. Embora imagino que algum infeliz leitor deva ter o mesmo medo de Winston e, nesse caso,  ao primeiro sinal do que seria o terror dessa passagem, também imagino um livro saindo voando pela janela. 
O autor é genial, George Orwell. Ele fez o próprio leitor entender e refletir sobre a lógica torta dos adeptos do Partido. Ele fez parecer compreensível todo o sistema, tendo como partida, uma cabeça predestinada a pensar de uma única maneira. É meio insano. Mas quem, de fato, é insano? Não são os contra o sistema?
Pra mim, ficou evidente que o pior erro de uma sociedade é a ignorância. E o mais desesperador de tudo é eu estar vivendo em 2020, com todo o advento da tecnologia e ver pessoas alegando, por exemplo, que a terra é plana.  Na página 325 da minha edição está o seguinte trecho: "O partido diz que a terra é plana, o partido diz que o gelo é mais pesado que a água - e treinava para não ver ou para não entender os argumentos que a contradizem".
Não me surpreendi com o final, pois, como disse, no fundo eu já o esperava, todos já esperavam, todos já sabiam. De mesma forma que Winston já sabia da vulnerabilidade em confiar em pessoas que não conhecia.  
O pior do livro é a desesperança. Nada é possível frente ao poder do Partido. Nem mesmo o amor. 
Me questiono sobre o amor de Julia e Winston.  Mas como posso? A verdade é que eles não me convenciam, não me parecia algo extraordinário. Mas estou eu aqui pensando com minha consciência arraigada em contos de fada, ou seja, o que eu entendo do inferno que os dois viviam? Para eles era sim, algo fora do comum e, mesmo assim, eles não conseguiram fazer isso resistir.
Será então que devíamos encarar isso como um aviso? Porque, aparentemente, uma vez instaurada tal realidade, não existe saída. 
Me dou conta de que iniciei esse texto falando que me sinto impotente frente a uma tecnologia que me vicia. Que não me torna mais crítica, que me aliena. E ainda assim, sou privilegiada por conseguir ter essa percepção. Quantos mais? Quantos não?
É preciso lutar de verdade, agora, pela educação das próximas gerações. É preciso largar esse novo comodismo que aprendemos ao longo dos últimos anos e retomar práticas menos nocivas para nosso intelectual. 
Vejo que a produtividade pode passar a ser encarada não mais como aquilo que você conseguiu produzir no fim do dia, mas sim, aquilo que você conseguiu não reproduzir desse seu hábito atual de permanecer imerso em uma dimensão de mundo que apenas nos mostra coisas sem valor, que não instiga nossa mente, que não nos faz seres pensantes e que limita nossa visão e audição para todo o resto que nos cerca.
A Mariana de hoje quer continuar lendo, continuar aprendendo, que lutar contra a ignorância e quer igualdade e justiça. Não quero me sentir mal ao assistir um seriado, mas preciso lutar com todas as forças contra o vício que vem... com o comodismo que já existe e que só espera uma mínima chance para instaurar a maldita inércia, que, como já sabemos, exige esforço ainda maior para quebrá-la.
Num mundo distópico tal qual o de 1984, este post já não existiria mais. Hoje, ele ainda está aqui e hoje ainda tenho esperança.


Parênteses 1. Sou doutora, não quer dizer que não lí nada nos últimos anos, mas meu conhecimento, sem dúvida, se afunilou em temas específicos. Quando menciono que perdi o hábito, perdi o hábito de ler livros de outros assuntos, de outros estilos.
Parênteses 2. Eu nem deveria estar me preocupando, pois o personagem de Violetas de Março é grotesco e não teria o porquê de eu estar nessa dinâmica doida haha, mas...  me deixem!
Parenteses 3. To achando esse texto muito brisa e quase já o apaguei algumas vezes, mas, sou persistente e continuo... quem sabe no final ele não faça mais sentido.

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